sexta-feira, 5 de outubro de 2007

GRANDE ENTREVISTA DE CAVACO SILVA A KATIA REBARBADO D'ABREU - "O Ódio da Ponte"


Katia Rebarbado d’Abreu – Boa noite, Professor.

Professor Cavaco Silva – Boa noite, Dona Katia Rebarbado d’Abreu.

Katia Rebarbado d’Abreu – Antes de mais, em nome de todos os blogonautas portugueses, gostava de lhe agradecer a sua disponibilidade para esta entrevista, sobretudo, quando toda, ou quase toda, a Comunicação Social Nacional o acusa de um ensurdecedor silêncio.

Cavaco Silva – Acredite que é todo meu, o prazer de estar aqui, esta noite, para responder às suas perguntas.

Katia Rebarbado d’Abreu - Professor Cavaco. Silva: por três vezes, nas Legislativas de 95, nas Presidenciais de 96, e, mesmo antes, embora simbolicamente, no Garrafão da Ponte, os Portugueses disseram-lhe ostensivamente "NÃO". Por quê, então, esta súbita insistência no regresso à política activa?...

Cavaco Silva -- Minha senhora, como sabe, nestes últimos 10 anos, muita coisa se transformou em Portugal, os Portugueses passaram por muitas experiências, sobretudo, por muitas más experiências, e, de certa forma, aprenderam a distinguir a boa moeda da má moeda. Quando me decidi a apresentar-me como candidato presidencial, penso que venho ao encontro desta enorme necessidade de amadurecimento e mudança da sociedade portuguesa.

K.R.A. – Para muitos Portugueses, essas más experiências, que referiu, são fruto e consequência directa dos dez anos em que governou Portugal, nalguns meios, conhecidos, mesmo, pela depreciativa designação de The Great Portuguese Disaster…

C.S. – Do meu ponto de vista há algum exagero nessa apreciação, sobretudo agora, em 2005, em que procuro aparecer, com uma imagem renovada de progresso e esperança.

K.R.A. -- Mas tem consciência de que este seu súbito reaparecer na cena política nacional, ao contrário de um movimento de renovação, veio reintroduzir um estado eventualmente mais pantanoso do que o anterior?...

C.S. -- Mais pantanoso, como, minha senhora?...

K.R.A. -- Mais pantanoso, porque, como consequência dos rumores da sua candidatura, o octogenário Mário Soares, por muitos considerado a epígrafe, discutível, ou não, da nossa Democracia, se sentiu na obrigação de se colocar como seu adversário. Porque, por sua vez, esse súbito avanço de Soares teve como consequência vir pôr a nu algumas clivagens internas do P.S., ou seja, remeteu para quezílias locais um momento de intervenção cívica que deveria ser de renovação e esperança, limitando-se a fazer rodar num palco, já de si desgastado pelas circunstâncias, nacionais e internacionais, velhos actores de velhos papéis...

C.S. -- Minha senhora, o que me fez avançar foi apenas um imperativo de consciência, porque não me resigno, porque conheço muito bem a razão das dificuldades que atravessamos, porque sei que posso ser um factor de confiança, de estabilidade e de credibilidade...

K.R.A. -- Repito que, nos últimos 10, 11 anos, por 3 vezes, os Portugueses se pronunciaram e lhe disseram o contrário…

C.S. -- Fala-me de 3 vezes... sinceramente, não me lembro dessas 3 vezes… Que me recorde, a única vez em que fui preterido pelos Portugueses foi em favor do doutor Jorge Sampaio...

K.R.A. -... e já antes, na derrota de Fernando Nogueira...

C.S. -- Mas aí, como se deve lembrar, o derrotado foi Fernando Nogueira, não eu...

K.R.A. -- ... ou antes ainda, naquilo que muitos designaram pelo "Rally do Ódio", em que o professor foi publicamente humillhado, no garrafão da Ponte...

C.S. -- Minha senhora, temos estado a falar de actos eleitorais...

K.R.A. -- E eu a recordar-lhe que, de acordo com a longa história de emancipação dos direitos de liberdade e cidadania dos povos, as maiores manifestações de desagrado se fizeram, não nas urnas, mas nas ruas, ou seja, sendo mais objectiva, no caso português, desde o Verão Quente de 1975, que não se via um levantamento popular como o que sucedeu no garrafão da Ponte.

C.S. -- Minha senhora, muito sinceramente, não vejo que o que aconteceu na Ponte tivesse a ver directamente comigo. Tanto quanto me lembre, isso são coisas muito antigas, havia umas quantas pessoas, deixe que lhe diga, com uma educação que, do meu ponto de vista, muito deixava a desejar, que se estavam a recusar a cumprir os seus deveres de contribuintes, e a impedirem que o Estado fizesse as cobranças a que tinha direito, num momento em que, justamente, todos os indicadores de preços, e eu posso trazer-lhe todos os recortes do "Financial Times" dessa altura, dizia eu, todos os indicadores de custos apontavam para uma urgente necessidade de aumento de custo das portagens...

K.R.A. -- Portanto, do seu ponto de vista, toda aquela massa humana se limitava a um bando de iliteratos que não tinham sabido interpretar os indicadores do "Financial Times" ...

C.S. -- Se quiser colocar a questão desse ponto de vista, também a aceito... Para mim, a questão era bem clara: durante toda a semana, as curvas financeiras vinham a apontar para uma necessidade de aumentar as portagens, de modo a evitar um irreparável desequilíbrio no binómio custos/receitas. Aliás, se bem se lembra, a normalidade foi rapidamente restabelecida, com a intervenção das forças da ordem, e o Estado de Direito ali mesmo salvaguardado.

K.R.A. -- Há quem continue a ver, nessa "intervenção", um lúgubre regresso às célebres cargas policiais do tempo da Ditadura... Da qual resultou, aliás, como mais dramática epígrafe, uma bala que tornou irremediavelmente paraplégico um jovem que apenas se tinha deslocado ao viaduto do Pragal, para se inteirar do que estava a acontecer...

C.S. -- Minha senhora, terá de me dar razão, o bom senso aconselhava qualquer cidadão prevenido a não se deslocar a um... digamos... campo de batalha, sem que o movessem razões realmente urgentes. Deixe que lhe diga que eu próprio fui jovem, assisti a muitos conflitos provocados por agitadores durante o tempo de estabilidade, progresso e esperança governativos do Professor Doutor Oliveira Salazar, e nunca tive..., não tinha... a tentação de sair a rua nessas ocasiões, mesmo, repito..., mesmo, quando outros estudantes, mais desprevenidos, o faziam. Reza um provérbio algarvio que cada um sabe de si, e que só Deus é que sabe de todos... Para mais, tenho de lhe confessar, só muito depois é que fui informado desse, enfim, desagradável... acontecimento..., que hoje, dez anos passados, e com a experiência e o conhecimento que tenho da realidade portuguesa, obviamente lamento, mas a verdade é que, como a senhora sabe, que lê jornais, ouve rádios, vê televisões, coisas dessas acontecem diariamente na cena mundial, e, deixe-me que lhe diga, comparativamente com a situação social da nossa Aldeia Global, Portugal continua a ser um oásis, minha senhora, Portugal continua a ser um oásis, relativamente a muitos países do Mundo, por exemplo, o Iraque, ou o Afeganistão, em que tão recentemente um dos nossos jovens mancebos perdeu a vida e outro ficou gravemente ferido, um oásis, relativamente a um mundo em que, todos os dias, jovens ficam paraplégicos, devido ao disparo perdido de balas reais, por armas de borracha...

K.R.A. -- De balas de borracha, disparadas por armas reais, quer o Professor dizer...

C.S. -- … isso… isso…

K.R.A. -- Que, naquele caso, eram mesmo balas reais, e disparadas por armas reais, sobre a população portuguesa...

C.S. -- Se quiser encarar isso assim, terei de lhe acrescentar que, do ponto de vista jurídico, nada ficou provado, e que nem os tribunais deram qualquer tipo de relevância ao caso. Do meu ponto de vista, e resumindo, tudo não passou de um pequeno episódio necessário para restabelecer a Ordem Pública, e que, posteriormente, como é muito hábito em Portugal, o caso, ao contrário da imprensa estrangeira, foi desagradavelmente empolado pela nossa Comunicação Social.

K.R.A. -- Para muita gente, pelo contrário, a Ponte continua a ser vista como o Espaço da Insurreição, ou, como disse o Presidente da República de então, o Dr. Mário Soares, um exemplo real de um exercício daquilo que ele designava por "direito do povo à indignação", assistindo-se no Portugal Democrático, à primeira vez em que, desde o 25 de Abril de 1974, um político e o Poder caíam, redondos, na rua.

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